Conheça os mitos e histórias contados pelas moedas de euros


Mary Beard
A Point of View, BBC Radio 4

Moedas e notas de euro podem ser cunhadas
pelos países que adotaram a moeda única.
Enquanto prossegue o debate sobre o futuro do euro, vale a pena observar de perto a moeda em si. Nela, você encontra referências curiosas a episódios da história e política de cada país que adotou a moeda úncia - entre esses, a primeira tentativa de unificação monetária europeia, cerca de 2.500 anos atrás.


Quando o euro começou a circular, em 2002, houve uma espécie de acordo entre as nações que abandonavam suas próprias moedas, símbolos nacionais, para adotar os símbolos de uma nova união monetária.

As cédulas do euro tinham de ser idênticas em todos os países integrantes, decoradas com imagens genéricas de arquitetura europeia, como janelas, arcos e pontes.

Mas as moedas ofereciam algum espaço para manobra: um dos lados traria um mapa da europa, mas o outro poderia ser decorado com imagens escolhidas pelos países dentro da zona do euro, algo que refletisse suas identidades nacionais.

As monarquias da Europa foram, de certa forma, levadas a optar por imagens de reis, rainhas ou duques. O Vaticano optou pela imagem do Papa. Mas os demais, da Áustria à Eslovênia, optaram por uma gama de símbolos e lemas nacionais.

Ao decidir pela simplicidade, a Irlanda escolheu imagens de harpas (um dos símbolos nacionais) para todas as moedas, de um centavo até dois euros. A Estônia, talvez a menos criativa, optou por um mapa do país.

A França imprimiu as palavras "Liberdade, Igualdade e Fraternidade" em algumas das moedas. Outras trazem uma imagem da mascote da República Francesa, Marianne, de cenho franzido, como se estivesse irritada.

Segundo o site do Banco Central Europeu, "seus traços determinados personificam o desejo por uma Europa saudável e duradoura".

A Itália escolheu obras de arte distintas para cada valor de moeda, com o Coliseu, sua arena favorita para massacres, decorando a moeda de cinco centavos.

A Áustria também optou por imagens diferentes para cada valor de moeda, entre elas, um busto de Mozart.

Mas talvez sejam as moedas gregas de euro que mais instiguem o observador à reflexão.

As de menor valor mostram uma seleção de navios, as de 10, 20 e 50 centavos celebram heróis modernos na luta pela liberação da Grécia do domínio turco. Mas as moedas de um e dois euros fazerm referências à Antiguidade Clássica.

O estupro de Europa

Políticos gregos se gabam com frequência de serem herdeiros diretos do mundo clássico. Até me pergunto se a tendência à nostalgia não seria em parte responsável pela situação da Grécia moderna, aliada a gastos excessivos e outros problemas.

No que se refere às moedas, no entanto, muitos gregos devem estar se perguntando se a escolha dessas ilustrações clássicas foi inteligente. Será que foi um caso de orgulho antes da queda?
Mary Beard, escritora e historiadora
especializada em História Clássica.
No centro da moeda de dois euros está um touro. Montada no touro está uma menina. A imagem, inocente para quem desconhece mitologia grega, representa, na verdade, um estupro: Zeus, o rei dos deuses, sequestrando a princesa Europa de sua cidade natal, Tyre, no Líbano.

Segundo o mito, Zeus tinha "se apaixonado" pela jovem Europa e para "conquistá-la" assumiu a forma de um touro e foi para a praia onde Europa brincava com seus amigos. Manso, lambeu as mãos da menina e deixou que ela o acariciasse e decorasse seus chifres com flores.

Mas assim que ela montou sobre seu lombo, o touro alçou voo, levando Europa, apavorada, para seus domínios em Creta.

Escritores romanos e gregos há muito debatem sobre o mito. Teria Europa sido descuidada e ingênua? Teria ela seduzido o touro? Teria o touro drogado Europa? Ou será que Europa sempre quisera ser levada pelo Touro?

Qualisquer que sejam os atenuantes, o fato é: houve um estupro.

E por que incluir na moeda grega de euro uma referência a este mito?

Bem, apesar do fato inconveniente de que a princesa da história veio do Líbano, seu nome acabou sendo dado ao continente Europa. Portanto, a inclusão do mito na moeda seria uma forma de lembrar ao mundo que sem a Grécia não haveria uma Europa. Ou seja, a Grécia inventou o continente.

Ainda assim, sempre tive dificuldade em entender como os gregos lidavam com a ideia de ter uma imagem de estupro balançando em seus bolsos em meio a uns trocados. Será que não refletiram sobre a história por trás da imagem charmosa da menina e do touro? Ou não pensaram no que estava para acontecer em seguida?

E que novos significados a imagem sugere hoje? Quando jornalistas gregos falam do "estupro" de seu país e de como a Grécia foi tratada de forma desonesta?

União Monetária
A moeda grega de um euro suscita reflexões ainda mais interessantes. Seu desenho, mostrando uma coruja de olhar ameaçador, é uma cópia exata de uma moeda de quatro dracmas usada em Atenas no século 5 antes de Cristo.

O pássaro era o símbolo de Atena, deusa da sabedoria e astúcia, protetora da cidade de Atenas. Quase todas as moedas de Atenas na Antiguidade traziam essa imagem.

E aqui tem início a história da primeira união monetária da Europa.

Atenas, no século 5 antes de Cristo, era uma democracia (a primeira do mundo, alegam, dubiamente, os gregos). Atenas era também um império explorador, controlando muitos outros Estados na região do Mediterrâneo. 
Por volta do ano 440 antes de Cristo, os atenienses decidiram obrigar todos esses povos a se livrarem de suas moedas, que traziam símbolos nacionais próprios, e a adotar as "corujas" atenienses em seu lugar. Avisos públicos detalhando a nova regra ainda existem hoje, talhados em pedra, em regiões que um dia constituíram o chamado império de Atenas.

As regras, pelo que se lê hoje, eram bastante rigorosas. Elas envolviam, além da moeda, a adoção da unidade ateniense de pesos e medidas.

Os países do império eram obrigados a trazer suas moedas para ser trocadas em Atenas, com uma porção substanciosa do dinheiro sendo embolsada pelo tesouro ateniense.

A desobediência era punida com perda de cidadania e, possivelmente, pena de morte.

Historiadores modernos quebram a cabeça para entender o que estaria de fato acontecendo ali. Será que o objetivo dos atenienses era simplesmente fazer lucro? Será que os Estados do império tinham interesse em pertencer à zona de Atenas? Nesse caso, ameaças com a pena de morte parecem um pouco desnecessárias.

Outra questão, teria a legislação conseguido sucesso em erradicar as outras moedas e estabelecer as corujas por todo o império? Não podemos saber com certeza.

Mas qualquer que seja a interpretação, é difícil resistir à conclusão de que os imperialistas atenienses estavam usando a união monetária para demonstrar seu poder político - e é difícil não imaginar que a hora da vingança finalmente chegou, 25 séculos mais tarde.

Mas, antes que nós britânicos achemos graça das escolhas infelizes de símbolos que adornam as moedas de euro gregas, devemos ficar atentos às nossas próprias escolhas.

Vistos de permanência limitada emitidos para pessoas que visitam a Grã-Bretanha são decorados, no topo, à esquerda, com as estrelas da UE e - o Ministério do Interior acaba de confirmar - aquele mesmo touro.

A vítima feminina desapareceu. Agora, apenas o estuprador garante ao estrangeiro o direito de viver na Grã-Bretanha.

Mary Beard é professora de Literatura Classica na University of Cambridge.
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